7 de dezembro de 2013

 

Mariluce Moura fala das torturas e da morte de Gildo Lacerda à Comissão Estadual da Verdade

 Dia 4 de dezembro de 2013. Salão nobre da Reitoria da Universidade Federal da Bahia. O presidente da Comissão Estadual da Verdade, sociólogo Joviniano Neto, anuncia três depoimentos a serem prestados, por graves violações de direitos nas prisões da ditadura militar (1964-1985).  Mariluce Moura, viúva do dirigente da Ação Popular morto na tortura e até hoje com o corpo desaparecido, entrevistada por Dulce Tamara Lamego Silva e Aquino; Emiliano José da Silva Filho, preso, torturado e mantido na Penitenciária Lemos de Brito por quatro anos, entrevistado pelo advogado Jackson Azevedo; e Marival Caldas, sindicalista petroleiro cassado e preso após o golpe militar, entrevistado por Antônio Walter Pinheiro, presidente da ABI e diretor da Tribuna da Bahia.

Dulce Aquino anuncia: “Vamos ouvir o relato de Mariluce Moura, uma história de amor, heroísmo e de lição de vida. Uma história de recuperação e de amor, uma mãe que se salva e salva a filha no ventre, Tessa, hoje professora de Filosofia da USP. No final, o herói morre, dando a vida pela pátria e pela liberdade”. Dulce Aquino, além de integrante da Comissão da Verdade da Bahia, é amiga de Mariluce, foram colegas no extinto Colégio Aplicação da UFBA. Presentes à Audiência irmãos da depoente, entre eles Antônio Jorge, Cláudia, Suzana, Pedro, Solange. Na platéia, Emiliano José, Waldir Pires, José Sérgio Gabrielli, Oldack Miranda, Luiz Contreiras, Amabília Almeida, e todos os demais membros da Comissão da Verdade. E amigos, muitos amigos.
“MÃE, CONTA A HISTÓRIA”
Mariluce Moura exibiu o vídeo intitulado “Anistia”, produzido pela TV Assembléia (SP), com Madalena Soares Prata, viúva de José Carlos da Mata Machado, assassinado na tortura junto com Gildo Lacerda. As duas lêem um manifesto pedindo apuração das responsabilidades, justiça e o corpo desaparecido de Gildo - há 40 anos. Ela já prestou depoimentos nas comissões da verdade de Minas Gerais e São Paulo, duas vezes na Comissão Nacional da Verdade e também numa sessão especial da comissão da verdade da Assembléia Legislativa de São Paulo.  No vídeo, Tessa lembra que disse um dia, aos seis anos de idade: “Mãe, conta de novo a história de Gildo, meu pai biológico...”. Desse dia em diante Mariluce dedicou-se com mais vontade a investigar sua história. Tessa conta que desenhou sua mãe grávida no enterro de seu pai. “Uma coisa que nunca aconteceu”. Aos 15 anos, voltou a conversar mais sobre o pai assassinado pelos militares. “É difícil aceitar uma morte em que não se tem a materialidade, a falta de um corpo para ser enterrado...”.

O vídeo exibido mostra imagens do pai de Gildo Lacerda: “Ele agora está com Deus, dizem que ele morreu, mas, não vi os restos mortais dele. A notícia que tenho é pelos jornais”. “Eu queria enterrar meu pai”, declara Tessa Lacerda Moura. Mariluce ressalta que quatro gerações aguardam o descobrimento do corpo de Gildo Macedo Lacerda. A dos pais dele, a dele e de Mariluce, a da filha Tessa, e ainda a de Nara, filha de Tessa.
REPRESSÃO E DELAÇÕES
Mariluce contou a história. Trabalhava no Jornal da Bahia quando percebeu que estava sendo vigiada. Conheceu Gildo em 11 de junho de 1972, a data de aniversário do irmão Antonio Jorge. Casaram-se em 22 de agosto deste ano. Mariluce repassa a luta política interna da Ação Popular, a maioria se filia ao PCdoB, uma minoria tenta se reorganizar como AP. Em novembro de 1971 a repressão já tinha completo conhecimento sobre a estrutura da organização revolucionária, com nomes e funções, através da delação do ex-militante Hugo Ramos de Farias. Mais de 200 nomes foram citados. É provável que a divisão provocada pela luta interna tenha impedido que essa informação tenha chegado até Gildo Lacerda.

Muitos anos depois, outra delação, de Gilberto Prata Soares, vai causar as prisões e mortes de todos os dirigentes da Ação Popular, incluindo José Carlos da Mata Machado e Gildo Lacerda. Mariluce vai revelando a história e a queda da Ação Popular. Até chegar ao 22 de outubro de 1973 quando ela (grávida de Tessa), Gildo, Oldack, Odívia, Nadja Magalhães Miranda  e sua irmã são presos pela Polícia Federal da Bahia. Mariluce foi submetida a choques elétricos, nua, espancamentos, com os olhos vendados. Além do coronel Luiz Artur de Carvalho, superintendente da Polícia Federal da Bahia, não tem nomes dos torturadores.
Há documentos que provam que Gildo Lacerda foi entregue ao CIEX, Centro de Informações do Exército Brasileiro, em 26 de outubro de 1973. É levado para o DOI-CODI de Recife (PE) onde é barbaramente executado na tortura. Seu corpo e o de Mata Machado foram enterrados como indigentes no Cemitério da Várzea. O corpo de José Carlos Mata Machado foi devolvido à família, e existe o registro da exumação no cemitério. O corpo de Gildo Macedo Lacerda nunca apareceu. “Gildo foi levado para uma longa viagem”, disse-lhe um agente policial. No dia 31 de outubro dois agentes entraram em sua cela e começaram a recolher objetos, cinto, colheres: “Você gosta de se vestir de preto?” e sorriu. Enfim, um capelão do Exército informou a ela a morte do marido, através das notas de jornais contando a fantasiosa historinha de tiroteio e fugas. Há testemunhas que viram Gildo e José Carlos moribundos no DOI-CODI de Recife, com as mãos algemadas pelas costas, seus gritos, o cheiro de fezes misturado com creolina. Depois o silêncio.

UMA SOBREVIVENTE
Em 1982, quando Mariluce escreveu “A Revolta das Vísceras”, com suas dores, ainda alimentava lá no fundo a fantasia de um dia reencontrar Gildo. Hoje, ela não tem mais dúvidas. Enfrentou a depressão, o odeio, a tentação do suicídio, a demissão da universidade: “O que me manteve viva foi a gravidez, tive que mudar o curso de minha vida, fui para São Paulo e me tornei uma sobrevivente”. A certidão de nascimento de Tessa levou 15 anos de luta judicial para incorporar o nome do pai. Emiliano José e José Sérgio Gabrielli foram testemunhas dessa trajetória. Hoje, temos uma certidão de óbito requerida e concedida “nos termos da lei”. No caso, a Lei da Anistia.
Ela avalia que a gravidez de Tessa a salvou de mais torturas. Os militares a conduziram ao Hospital Militar da Ladeira dos Galés, em Salvador, para exame médico, queriam fazer um raio-x do tórax e ela se recusou. Comprovada a gravidez, não foi mais torturada fisicamente. O depoimento de Mariluce foi encerrado por Dulce de Aquino. “Sinto que teremos que buscar justiça depois dos trabalhos da Comissão da Verdade. Pois é preciso nos perguntar, para que serve tudo isso?”. (Blog BAHIA DE FATO).

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