21 de junho de 2012

 

Reminho, o rei da alegria. Um texto que os jornalistas baianos devem ler.

REMINHO, O REI DA ALEGRIA

Emiliano José*

Fui amigo de Pastore, companheiro de redação, chefiado por ele às vezes, parceiro de chefia em outras ocasiões, sempre no Jornal da Bahia, sua única e rica experiência jornalística. E fui também companheiro de militância política, quando ele foi candidato a vereador, apoiado por mim, ambos no PMDB. Foi sua tentativa de imersão na política partidária, também única. Não falaria de Pastore – de Rêmulo Pastore – sem lembrar o contorno do Jornal da Bahia de então, nem que rapidamente, como quem fotografa não o período, mas o jornal especificamente, sem qualquer pretensão de uma análise acadêmica ou exaustiva. Impressões apenas, não mais do que isso.

O Jornal da Bahia, quando cheguei, estava saindo de uma dura batalha, vitoriosa batalha, contra o arbítrio, contra a perseguição impiedosa que lhe fora movida pelo ex-prefeito e ex-governador Antônio Carlos Magalhães, que estava tomado por uma quase obsessão de fechar o diário – uma espécie de Asterix, que não se rendia ao imperador de modo nenhum, que desenvolvera uma impressionante campanha denominada “Não deixe essa chama se apagar”, conseguindo a adesão da sociedade baiana. O desvario de Antônio Carlos Magalhães chegou a extremos – processou o redator-chefe, João Carlos Teixeira Gomes (Joca), tentando enquadrá-lo na Lei de Segurança Nacional. Foi mais real do que o rei – nem os juízes militares embarcaram na sandice dele, e absolveram o jornalista. E olhe que a ditadura raramente absolvia.

Eu cheguei ao jornal no início de 1975, recém-saído da prisão, depois de breve e bem-sucedida passagem pela Tribuna da Bahia. Começava o período do governo Roberto Santos, e este, de espírito inegavelmente mais democrático, embora também nomeado pelos militares, deixou de perseguir o jornal. O Jornal da Bahia respirou. Todos nós sentíamos outro clima.

Não é que a ditadura houvesse acabado. Ela só vai terminar em 1985, quando Tancredo Neves é eleito presidente pela via indireta. Nem que a repressão política deixasse de existir. Ela ainda continuará, ainda se tortura e se mata sob o governo Geisel, desacelera sob Figueiredo, quando, em 1979, ocorre a anistia. Para nós, alguns jornalistas que haviam recém-saídos das prisões políticas, como eu, havia, ainda, o fato de que o secretário de Segurança de Roberto Santos era Luiz Arthur de Carvalho, o mesmo ex-superintendente da Polícia Federal que me mandara para a tortura, o pau-de-arara, o choque elétrico no Quartel do Barbalho, em novembro de 1970, quando fui preso.

Ele próprio, Luiz Arthur, faria uma pressão cotidiana sobre a direção do Jornal da Bahia para que me demitisse. Houve um dos dirigentes do jornal que me aconselhou a procurar o coronel para solicitar dele que me deixasse trabalhar em paz, e é claro que me neguei a um comportamento tão subserviente, ainda mais com o cara que havia me mandado para a tortura. No final das contas, o jornal resistiu. Não fui demitido, como o secretário queria.

Parece exagero contar tudo isso, não? Mas, não é. É que o jornal havia absorvido alguns de nós, ex-presos políticos, numa atitude corajosa. Destaco sempre isso. Como não deixo de registrar a atitude ousada da Tribuna da Bahia, que foi a primeira publicação a me acolher, em novembro de 1974, logo depois que saíra da prisão. No Jornal da Bahia, estávamos eu, Oldack Miranda, Tibério Canuto e Dalton Godinho – eu e Tibério, vindos da Penitenciária Lemos Brito, de Salvador; Oldack, que viera de uma prisão em Minas Gerais e depois outra em Salvador, de onde foi arrastado para a tortura em Recife; e Dalton, que viera da experiência da Ilha Grande no Rio de Janeiro. Zanetti – José Carlos Zanetti –, também ex-preso político, chegou a fazer uma passagem meteórica pelo jornal, mas preferiu, logo, seguir outros caminhos, quem sabe mais apropriados à sua vocação missionária.

A redação nos acolheu carinhosamente. Éramos, vamos dizer assim, meio caretas, relativamente conservadores quanto a alguns costumes, avançados em outros, coisas que não interessam ser detalhadas aqui. E aqui entra Pastore, Rêmulo Pastore. E acentuo o nome não por acaso. É que havia o outro Pastore – secretário de redação, Rafael Pastore, o segundo homem do jornal, dirigido por Joca, João Carlos Teixeira Gomes, já citado por mim, brilhante e intrépido jornalista. Rafael era um tipo contido, afável, desses que gostam dos bastidores, que dirigia as coisas serenamente. E irmão do irrequieto Rêmulo.

Era uma redação de muitos homens, poucas mulheres. Lembro-me dessa redação, da redação de Reminho – é, Rêmulo Pastore era conhecido assim, apesar de sua avantajada estatura. Não sei se o diminutivo veio como herança de família, ou se os próprios companheiros de redação resolveram tratá-lo assim. Quando cheguei, havia Fred, pauteiro dos bons. Havia Anísio Félix, editor creio que de Internacional, Oldack Miranda, editor de Economia. Césio Oliveira foi meu primeiro chefe de reportagem, que me convidara para sair da Tribuna e integrar a equipe que ele dirigia. Newton Sobral, Rangel, Geraldo Lemos, Teixeira, Tibério, Dalton, Dailton, Vander Prata, Zé Fernandes, Antonio Jorge, Moacir Ribeiro, Marcelo Simões, Mário Freitas, Edson Almeida, Edson Barbosa, Renato Pinheiro estão entre os editores e repórteres que me recordo, e sei que faltam muitos.

Das mulheres, e haverá também lacunas, recordo-me com imenso carinho de Mara Campos, de Linalva, de Lúcia, estas duas repórteres, a primeira copydesk. Mara, aliás, me deu uma imensa alegria quando de uma de minhas primeiras matérias no jornal, sobre o Hospital Juliano Moreira. Ela saiu de lá do fundo, da área do copy, e perguntou quem era.

Emiliano, e elogiou minha reportagem. Era a glória pra quem estava chegando. É, neste momento, secretária de Comunicação de Lauro de Freitas. Lúcia, bela e risonha como sempre, encontrei-a recentemente, numa homenagem a Anísio Carvalho, editor de fotografia do Jornal da Bahia. Anísio ainda vive no Alto do Saldanha, em Brotas, onde também morei. Linalva, com quem compartilhei profissão e sentimentos, se foi precocemente.

O time do copy era de primeira. Além de Mara, e me valho apenas da memória, havia Gilson Nascimento e Fernando Vita, os dois, textos impecáveis, conhecedores dos mistérios da língua portuguesa. Com eles, também, o velho comunista José Maria, que João Falcão abrigara no jornal. É, naquele tempo, as matérias passavam pelo crivo do copydesk, para o bem e para o mal. Do meu ponto de vista, sempre para o bem, que preferia sempre o olhar exigente de outro profissional, ainda mais quando fossem cuidadosos, experientes, e conhecessem bem o português, como era o caso, e sei que não me recordo de todos.

No aquário – é, Reminho foi da Era de Aquário, como recentemente, num debate, se referiu o ex-ministro Franklin Martins, ao falar daquele compartimento de vidro no qual ficavam o redator-chefe e às vezes o secretário de redação – ficavam Joca e Rafael e, penso, Gustavo Tapioca. Dali, a gente não se aproximava muito. Era o poder da redação, poder mesmo, quase sacrossanto. No aquário, decidia-se o nosso destino – melhor, o destino de nossas matérias, se ela teria a glória de estar no jornal no dia seguinte, se ocuparia uma chamada de primeira página, se seria editada do jeito que havíamos escrito, se haveria cortes, ou se simplesmente seria suprimida, provavelmente nada muito diferente de hoje, embora me pareça que já foi superada a Era de Aquário.

Nada de saudosismos. Apenas constatações. Guardo lembranças cheias de carinho com aquela redação. A redação de Reminho. E agora, nos aproximamos um pouco mais do nosso personagem. É sabido que ele partiu cedo, morto num acidente, consternando a todos nós. O que importa, aqui, é recuperar sua presença, que não foi pequena. Reminho encarava o seu trabalho seriamente. Fazia-o, no entanto, sempre com alegria. A vida era para ele pura alegria. Ô vidão! – exclamava com freqüência. Ria com facilidade, tornava o seu entorno sempre leve. Era um bom companheiro de redação e, quem sabe, melhor ainda fora dela, no compartilhamento das mesas dos bares de Salvador. Encarnou uma Bahia boêmia, uma Bahia da noite. Os jornalistas, ou uma boa parte deles, gostava da noite.

Eu, o pouco que entrei na noite naqueles anos – e falo de meados da década de 70 até o início dos anos 80 – o fiz graças a Reminho, e, o que é pior, o fazia sem beber, o que é uma tragédia, naturalmente. A Cidade da Bahia, a Salvador de Reminho era o Centro Histórico, o Pelourinho, a Praça da Sé, e um de seus companheiros mais fiéis era Clarindo Silva. Reminho fazia da Cantina da Lua quase como uma segunda casa, e Clarindo tinha por ele um carinho especial, uma amizade sólida. Era outra Salvador, é preciso dizer. Não cabe dizer melhor, nem pior. Nenhuma tentativa de dizer que “naquele tempo” o mundo era mais feliz. Só constatar que aquela Salvador feita por Reminho, por Jheová de Carvalho, por Ruy Espinheira, por Anísio Félix, por Raimundo Machado, esta já não existe mais. Era um tempo de convivência, de conversa na mesa dos bares, de amizades solidificadas na alegria das noites de bebedeira – sim, de bebedeira, que mal há nisso?

Não se está dizendo que isso não ocorre. Só que houve deslocamentos, que não vou analisar aqui. Talvez um Clarindo Silva, por sua longevidade na noite, pela sobrevivência da Cantina da Lua, possa dizer com muito mais propriedade quais foram esses deslocamentos, e até onde estão hoje os pontos da boemia de Salvador, que eu não sou expert. Sei que Reminho era intérprete fiel de uma Salvador amorosa, carinhosa, boêmia, alegre, uma Salvador que fazia um carnaval compartilhado, de rua, no qual Reminho se esbaldava, se perdia cantando “não se perca de mim, não desapareça” entre a Castro Alves, Carlos Gomes, Cantina da Lua, até que um dia se tornou um ser encantado, e deixou Salvador mais pobre, porque sem sua transbordante, contagiante alegria, sua sede de viver. Todos nós, ao lembrar dele, ainda gritamos Ô vidão! E, com a lembrança, seguimos alegres a louca aventura de viver. Que é o que ele gostaria que fizéssemos sempre. Nada de chorar, nada de lamentos. Enfrentar a vida, e melhor que seja sempre com alegria. Como ele fazia. Viva Reminho!

*jornalista, escritor




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